Saturday Oct 09, 2010

Uma historia bem contada

-------- Leitura expressiva ----------

UMA HISTÓRIA BEM CONTADA

              A avó sorriu. Ah! então era essa a história que eles queriam ouvir naquela noite?

De cada vez que a contava, a ia aperfeiçoando, e de tal forma que sempre ela lhe parecia diferente, mais cheia de pormenores improvisados, de cruéis subtilezas, de pequeninos tons de incalculável malvadez.

Começou com a voz a sair-lhe das profundezas dos infernos.

"Era uma vez uma velha muito velha, muito feia e muito má!!! Vivia numa casa escura e triste, de paredes pretas e buracos no chão nos quais por vezes tropeçava ou enterrava os seus próprios pés compridos e ossudos.

(De repente a voz da avó tornava-se maviosa e fininha como a de uma flauta.)

Viviam com ela dois meninos muito lindos, loirinhos, um encanto de crianças, que pareciam mesmo uns anjinhos voando, esvoaçando por aqui e por ali.

(De novo com a voz cavernosa.)

Mas a velha muito velha, muito feia e muito má, não descansava enquanto não os via a dormir, calados, sossegados, para ela cirandar à sua vontade por toda aquela horrorosa casa!

Um dia... quer dizer, uma noite... depois de lhes dar de comer, com um dedo cheio de verrugas muito espetado, ordenou na sua voz de bruxa da floresta:

- Meninos, já para a cama! Senão... (De novo a voz maviosa e fininha.)

E aqueles anjinhos loiros, de cabelos encaracolados e olhos meigos, correram para as suas caminhas, muito obedientes. Depois de um leve suspiro, adormeceram, a sorrir.

(De novo em voz cavernosa.)

Então a velha muito velha, muito feia e muito má, rebolou-se pelo chão, a rir às gargalhadas! Ah! Ah! Ah! Assim é que eu os quero!

Assim é que eu os quero! Ah! Ah! Ah!

Tirou o avental, desgrenhou ainda mais os cabelos e calçou uns chinelos de trapos com sola de madeira dura. E começou a descer as escadas, PAM... PAM... PAM... PAM... PAM...

     Ao chegar à porta do quarto das crianças, espreitou lá para dentro e a boca escancarou-se-lhe num sorriso horrível: Ah! Ah! Ah! Já estão a dormir! Já estão como eu quero!!! Ah! Ah! Ah!

E continuou a descer as escadas, PAM... PAM... PAM... PAM... Ao abrir a porta da cozinha que rangia como um gato esfomeado, a velha parou um bocado a ver qual era a gaveta dos talheres. Então abriu a gaveta e tirou de lá de dentro um grande, um enorme facalhão!!!

(Aqui, a avó fazia uma pausa maior e respirava com força. Na cama larga, os netos aconchegavam-se mais um ao outro e, embora já conhecessem o final mais que bem, abriam muito os olhos numa grande ansiedade, não fosse a avó mudar tudo à última da hora. Mal eles sabiam que, uma vez aqui chegada, ninguém conseguia segurar a avó! Imperturbável, ela continuou a contar:)

A velha muito velha, muito feia e muito má abriu a gaveta e, como já disse, tirou de lá de dentro um grande, um enorme facalhão e... e... e... e... e... e... e... e... pôs manteiga no pão!!!!!"

(As últimas quatro palavras foram ditas num tom sincopado e ingénuo, como se a avó estivesse a acabar de contar uma linda história cheia de flores e de passarinhos esvoaçando na Primavera.)

Uff! Que alívio, uff! A tensão desceu vertiginosamente e os risos nervosos levaram os dois irmãos primeiro a espernear na cama larga e depois a dar um beijinho à avó, enfiando-se o Pedro na sua cama para adormecer depressa, antes que o encantamento desaparecesse de todo.

 

Maria Alberta MENÉRES, Uma Palmada na Testa, Verbo


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